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a trajetória da Cidade Baixa

Se há algo que define a história do lugar que hoje conhecemos como Cidade Baixa é o fato de ser banhada pelas águas da Baía de Todos-os-Santos. Não por acaso, como explica o historiador Milton Moura, a presença das águas salgadas da baía e dos rios que nela desembocam permanece visível até hoje nos topônimos de grande parte dos bairros da região.

“Todos os nomes dessa parte da antiga Salvador estão relacionados às águas — sejam salgadas ou doces. Ribeira, Monte Serrat, que faz referência a um rochedo na Catalunha; Bonfim, que significa o ‘bom fim’ da navegação, aquilo que todos desejavam; Boa Viagem, Mares. Há também Água Brusca, que quer dizer ‘água brotando’, o Porto dos Tainheiros, Água de Meninos”, exemplifica o professor.

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Essa relação dos habitantes com a região remonta a muito antes da chegada dos portugueses.

“Toda a faixa costeira da Cidade Baixa, especialmente a voltada para o interior da Baía de Todos-os-Santos, era utilizada com finalidades ritualísticas por comunidades indígenas, incluindo a presença de sambaquis (sítios arqueológicos pré-coloniais formados pelo acúmulo de sedimentos, principalmente conchas)”, explica o historiador Rafael Dantas, citando as regiões de Itapagipe, Ribeira e, mais adiante, Plataforma.

Com a chegada dos colonizadores, a região em torno de Itapagipe chegou a ser considerada como possível local para a criação de uma cidade-fortaleza, mas a ideia não avançou devido à vulnerabilidade geográfica.

“Por se tratar de um terreno muito plano, a área ficava vulnerável do ponto de vista defensivo, ao contrário da Cidade Alta, erguida sobre um monte com mais de 60 metros de altura, ideal para a construção de uma fortaleza”, explica Dantas.

Durante muito tempo, a região permaneceu dedicada tanto à atividade pesqueira quanto à construção e ao reparo de embarcações.

“Por conta de suas águas calmas e rasas, a Ribeira era o local ideal para que barcos e saveiros fossem mantidos, recarregados, pintados e seguissem viagem para o Porto de Salvador, para o interior da Baía de Todos-os-Santos e, posteriormente, cruzassem o Atlântico”, acrescenta o historiador.

Apesar das atividades ligadas ao mar, a ocupação da região ainda era tímida até o século XVIII, quando um marco religioso passou a impulsionar o crescimento da Península de Itapagipe: a Igreja do Bonfim.

“Quando a Igreja do Bonfim foi construída, a região ainda não apresentava nenhum tipo de adensamento populacional — exceto na faixa costeira, onde ficava a Igreja de Nossa Senhora da Penha e algumas poucas casas de pessoas envolvidas em atividades ligadas ao mar”, explica Dantas.

Com a construção do templo na Colina Sagrada, acrescenta ele, houve um aumento significativo da presença de pessoas na península.

“Vieram os romeiros, as pessoas vinculadas à Irmandade, aqueles que trabalhavam na própria igreja, além das reformas urbanas realizadas no caminho do Bonfim, que passaram a impulsionar a ocupação da região”, observa o historiador.

Indústrias e linha férrea

Na segunda metade do século XIX, surgem outros marcos na Cidade Baixa: as indústrias e a linha de ferro da Bahia de São Francisco Railway — a primeira ferrovia do estado, construída entre 1857 e 1863 por engenheiros britânicos, inicialmente ligando Salvador a Alagoinhas e, posteriormente, chegando a Juazeiro, com saída da Calçada.

Essa combinação de fatores resultou em um aumento significativo da população na região.

“Chegaram indústrias têxteis e de outros setores ligados à economia do século XIX, além de armazéns e galpões relacionados a Tarquínio, posteriormente Catarino e Almeida Brandão”, explica Rafael Dantas, destacando que todas essas instalações ficavam próximas das linhas férreas.

Para abrigar esses trabalhadores, o empresário Luiz Tarquínio, após fundar a Companhia Empório Industrial do Norte (Cein) em 1891, criou a primeira vila operária do Brasil.

“Luiz Tarquínio tinha muito dinheiro e achava que era um bom investimento, digamos assim, fidelizar um operariado que gostasse dele e que não se atrasasse; nada mais prático”, pontuou o professor Milton Moura. “Já pensou sair de casa e, em poucos minutos, chegar ao trabalho?”

Inaugurada um ano após a Cein, a Vila Operária era composta por 258 casas residenciais de dois pavimentos. Logo em seus primeiros anos a vila já contava com água canalizada, esgoto, luz elétrica e gasogênio. Gradativamente também foram implantados serviços como escola, gabinete médico, farmácia, loja, creche, campo de futebol, armazém, entre outros. A infraestrutura da vila operária e as condições de moradia eram, assim, bastante superiores às dos demais trabalhadores pobres da cidade.

Luiz Tarquinio criou a primeira Vila Operária em 1891 | Foto: Fernando Amorim / Cedoc A TARDE 1996

Depois, outras indústrias se instalaram na Cidade Baixa, entre elas a Fratelli Vita e a Fábrica Chadler, nos Mares, que espalhava pelas redondezas um marcante cheiro de chocolate.

“Gradualmente, a partir de meados do século XX, essas indústrias foram deixando a região em razão das mudanças no vetor econômico. O polo industrial de Salvador — e da Bahia como um todo — acabou se deslocando para o Recôncavo e para a Região Metropolitana da capital”, explica Rafael Dantas.

Fratelli Vita: região da Cidade era polo industrial

Fratelli Vita: região da Cidade era polo industrial | Foto: Walter Carvalho / Cedoc A TARDE 1993

Memórias do Hidroporto

Além das boas condições de moradia, os operários e suas famílias tinham acesso a “espetáculos” que não podiam ser vistos em outras partes da cidade, como os hidroaviões pousando nas águas da Baía de Todos-os-Santos — uma história resgatada pelo escritor e publicitário Nelson Cadena em seu livro “A Cidade da Bahia”.

Cadena conta que o hidroporto foi inaugurado oficialmente em 1935, quando o governador Antônio Muniz Sodré de Aragão veio do Rio de Janeiro e “amerrissou” em Itapagipe.

Fábrica da Chadler

Fábrica da Chadler | Foto: Wilson Besnosik /CEDOC A TARDE: 13/01/94

No entanto, antes mesmo de existir qualquer estrutura mais elaborada, o local já havia sido palco de um feito histórico. “Em 1922”, relata Cadena, “após realizar a primeira travessia aérea do Atlântico, os pilotos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral pousaram nas águas da Ribeira”.

Quatro anos após a inauguração do hidroporto, construído inteiramente em estilo art déco, o equipamento recebeu a visita de um passageiro que chamou a atenção não apenas da cidade, mas de todo o país.

“O presidente Getúlio Vargas desembarcou ali em 1939, durante as comemorações da descoberta do petróleo em Lobato”, relata o pesquisador.

Vila Operária

Vila Operária | Foto: Cedoc A TARDE 1977

Na década de 1940, o hidroporto passou a operar exclusivamente com cargas, e, algum tempo depois, foi desativado. Ainda hoje, é possível encontrar suas ruínas na Península de Itapagipe.

“Infelizmente, o hidroporto está destruído. Estive lá recentemente para dar algumas entrevistas e fiquei impressionado — está tudo corroído”, relata Cadena, lembrando que um restaurante chegou a funcionar no local. “Uma recuperação não seria barata. Além disso, é preciso identificar a quem pertence o imóvel”, acrescenta, ao comentar as dificuldades para uma eventual restauração.

Rock no Cine Roma

Mas, se os moradores da Cidade Baixa perderam o atrativo do hidroporto, ganharam uma nova fonte de entretenimento em 1948, quando Irmã Dulce e o frei Hildebrando Kruthaup inauguraram o Cine Roma — onde hoje funciona o santuário dedicado à Santa Dulce dos Pobres.

Construído a partir de doações, o cinema tornou-se um dos pilares de sustentação do Círculo Operário da Bahia, que, junto com outras duas salas de exibição, revertia as bilheterias em ações de caridade, segurança alimentar e atendimento médico para os trabalhadores da região.

Além da exibição de filmes, o Cine Roma transformou-se no epicentro do rock em Salvador entre as décadas de 1960 e início de 1970, tornando-se um contraponto ao movimento da Bossa Nova, que ganhava força em outros círculos intelectuais da cidade, especialmente no Teatro Vila Velha.

“O Cine Roma tornou-se o reduto do iê-iê-iê baiano depois que Waldir Serrão convenceu Irmã Dulce e o frei Hildebrando a alugar o espaço nos dias em que não havia exibições de filmes. Por lá se apresentaram Roberto Carlos, Wanderléa e Jerry Adriani. Mas a banda mais requisitada era Raulzito e os Panteras, que geralmente encerrava os shows e acompanhava as estrelas da Jovem Guarda em suas passagens por Salvador”, relata o jornalista Zezão Castro, autor do livro ‘A Jovem Guarda na Bahia’.

Cine Roma surgiu em 1948 e se tornou epicentro do rock feito na Bahia

Cine Roma surgiu em 1948 e se tornou epicentro do rock feito na Bahia | Foto: Geraldo Ataíde / Cedoc A TARDE 1987

Segundo ele, o auge do Cine Roma como palco do rock ocorreu entre 1965 e o início dos anos 1970, período em que atraiu a juventude de Salvador.

“Os shows lotavam. Os filhos de operários da região compareciam em peso, mas muita gente da Cidade Alta também descia para assistir”, lembra Zezão. “Pepeu Gomes tocou lá, Armandinho, com sua banda Hells Angels, também. Havia outros espaços com rock em Salvador, como o Cine Nazaré, mas o Cine Roma era o principal reduto.”

Raulzito fez história

A principal estrela do rock baiano, Raul Seixas, tinha uma ligação com a Cidade Baixa que ia muito além de suas apresentações no Cine Roma. Foi no bairro de Monte Serrat, mais precisamente na Rua Rio Itapicuru, que ele viveu a infância e parte da adolescência. Ali também começou sua parceria com Waldir Serrão e sua trajetória rumo a se tornar ídolo de várias gerações.

“As famílias materna e paterna de Raul Seixas eram da Cidade Baixa, moravam ali na Baixa do Bonfim”, conta o jornalista Pacheco Maia, fã e estudioso da vida do pai do rock. “O avô dele, o velho Raul Seixas, tinha uma empresa de reparo de embarcações e também uma loja de importados. No início do século XX, o Brasil praticamente não fabricava nada”, acrescenta Pacheco.

Já o pai, que também se chamava Raul Varela Seixas, era responsável pelo telégrafo da linha férrea da Bahia de São Francisco Railway. Ele e a mãe do futuro astro do rock, dona Maria Eugênia, casaram-se na Igreja do Bonfim. Seu parceiro musical, Waldir Serrão, morava na Vila Operária. E Raul? Quando menino, ele e o irmão Plínio deixavam a mãe de cabelo em pé ao fugir à noite para tomar banho de mar na Praia da Boa Viagem. Como se vê, a história da Cidade Baixa parece estar toda entrelaçada.

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